FOLHA DE S. PAULO
Um golpe contra a democracia está em curso desde o último dia 26 de maio
e a circunstância que o torna mais ameaçador do que nunca antes na
história deste país é a atitude de avestruz que a imprensa tem mantido,
deixando de alertar a população para a gravidade dessa agressão.
O decreto nº 8.243, assinado por Dilma Rousseff, que cria um "Sistema
Nacional de Participação Social", começa por decidir por todos nós que
"sociedade civil" deixa de ser o conjunto dos brasileiros e seus
representantes eleitos por voto secreto, segundo padrão universalmente
consagrado de aferição da legitimidade desse processo, e passa a ser um
grupo indefinido de "movimentos sociais" que ninguém elegeu e que cabe
ao secretário-geral da Presidência, e a ninguém mais, convocar para
examinar ou propor qualquer lei, política ou instituição existente ou
que vier a ser criada daqui por diante em todas as instâncias e entes de
governo, diretas e indiretas, o que afeta também os governos estaduais e
municipais hoje na oposição.
Apesar da violência desse enunciado, a maioria dos jornais e televisões
do país nem sequer registrou o fato. E mesmo os que entraram no assunto
depois vêm diluindo o tema no noticiário como se não houvesse nada com
que seus leitores devessem se preocupar. Prossegue a sucessão de
manchetes em torno do golpe de 1964, mas para o de 2014 o destaque é
próximo de zero. Nenhum critério jornalístico justifica isso.
Esse decreto é, na verdade, um excerto do Terceiro Plano Nacional de
Direitos Humanos (PNDH-3), que o PT já tentou impor antes ao país também
por decreto --nas vésperas do Natal de 2009, no apagar das luzes do
governo Lula--, mas que, graças à forte reação da imprensa e consequente
mobilização da opinião pública, foi obrigado a abortar.
O PNDH-3 contém 521 propostas que, além da revogação da Lei de Anistia,
que passou "no tapa" depois que a imprensa comprou a ideia do governo de
que a prioridade nacional é voltar 50 anos para trás e não correr 50
anos para a frente, institui "comissões de direitos humanos" nos
Legislativos para fazer uma triagem prévia das matérias que eles poderão
ou não processar; impõe a censura à imprensa; obriga a um processo de
"reeducação" todos os professores do país; veda ao Judiciário dar
sentenças de reintegração de posse de propriedades "rurais ou urbanas"
invadidas, prerrogativa que se torna exclusiva dos "movimentos sociais";
desmonta as polícias estaduais para criar uma central única de comando
de todas as polícias do país, e vai por aí afora.
Ciente de que tal amontoado de brutalidades jamais será aprovado pelo
Legislativo, o PT está tratando de fazer com esse Poder o mesmo que fez
com o Judiciário. Os juízes não dão as sentenças que queremos?
Substituam-se os juízes por juízes "amigos". Um Legislativo eleito pelo
conjunto dos brasileiros jamais transformará essas 521 propostas em lei?
Substituam-se os legisladores por "movimentos sociais" amestrados sob a
tutela da Presidência da República...
O argumento de que esse é o jeito de forçar o Congresso a reformas não é
honesto. Para forçar reformas que o povo deseje, existem instrumentos
consagrados tais como o do voto distrital com recall, que arma as mãos
de todos os eleitores para demitir na hora os representantes que
resistirem ou agirem contra a sua vontade. Este tipo de participação,
sim, opera milagres estritamente dentro dos limites da democracia.
Substituir os representantes eleitos por "representantes" que ninguém
elegeu tem outro nome: chama-se golpe.
Depois da rendição do Judiciário com a renúncia de Joaquim Barbosa, só
sobra a imprensa. E os feriados da Copa farão com que só haja pouco mais
de meia dúzia de sessões legislativas completas em junho e julho
somados. Depois é véspera de eleição. É bom, portanto, que ela desperte
já dessa letargia, pois não haverá segunda chance: está escrito no
PNDH-3 que a imprensa é a próxima instituição nacional a ser desmontada.
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